Hodiernamente, é evidente o crescimento da importância dos prestadores de mercado em linha nos contratos celebrados pelos consumidores.
Com o surgimento do consumo colaborativo, a relação contratual típica “B2C” (profissional vs. cliente) veio dar lugar a uma relação triangular, a qual assenta, essencialmente, em três contratos:
Neste universo, foram surgindo diversos modelos de plataformas, cuja dinâmicas sofrem várias e constantes nuances.
Cogita-se sobre uma plataforma de anúncios (mero facilitador) ou numa plataforma de marketplace (com intermediação efetiva), para desde logo se concluir que é essencial tutelar a posição da parte mais fraca, leiga e profana da relação, precisamente o consumidor.
De facto, atendendo a esta (não tão) nova forma de contratação e à sucessiva insegurança que a mesma acarreta para os negócios com consumidores - as mais das vezes sendo difícil compreender os termos do contato e, até, as conhecer as partes contratantes - o legislador europeu e depois o nacional, vieram prever novas normas com o desiderato de proteger adequadamente o mercado de consumo.
Surgiram com este propósito, entre outros, a Diretiva 2019/771 do Parlamento Europeu e do Conselho de 20 de maio de 2019, relativa a certos aspetos dos contratos de compra e venda de bens e a Diretiva 2019/770, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de maio de 2019 sobre certos aspetos relativos aos contratos de fornecimento de conteúdos e serviços digitais, instrumentos jurídicos esses que foram transpostos para o nosso Decreto-lei n.º 84/2021, de 18 de Outubro (em diante Decreto-Lei n.º 84/2021).
O Decreto-Lei n.º 84/2021 determina nos seus artigos 44.º e seguintes a responsabilidade dos prestadores de mercado em linha, ao contrário do seu regime antecessor que não previa expressamente disposições a este respeito.
Neste âmbito, importa analisar o conteúdo e efeitos de tal artigo.
No seu n.º 1, o artigo 44.º do Decreto-Lei n.º 84/2021 refere expressamente o seguinte: “O Prestador de Mercado em Linha que, atuando para fins relacionados com a sua atividade, seja parceiro contratual do profissional que disponibiliza o bem, conteúdo ou serviço digital é solidariamente responsável, perante o Consumidor, pela falta de conformidade daqueles nos termos do presente decreto-lei”.
É conveniente salientar, a título de enquadramento, os Considerandos 23 e 18, respetivamente, das Diretivas 2019/771 e 2019/770. Estes Considerandos vêm clarificar que o operador da plataforma poderá ser considerado profissional se estiver a atuar como parceiro direto do consumidor. Por sua vez, nos casos em que não atuem em tal qualidade, os Estados-Membros “…deverão continuar a ser livres de alargar a aplicação da presente diretiva a operadores de plataformas que não cumprem os requisitos para serem considerados profissionais nos termos da presente diretiva.”.
Note-se que Portugal (e muito bem) foi um dos países que veio prever a responsabilidade solidária dos operadores de mercados em linha, ao invés da generalidade dos restantes Estados-Membros, pelo que é de salientar e saudar o seu arrojo em modernizar o regime.
Aqui chegados, e antes de mais, importa perceber o que é um “parceiro contratual” para efeitos do sobredito diploma?
O n.º 2 do referido artigo 44.º apresenta-nos um elenco não taxativo de situações em que se deverá considerar que o prestador de mercado em linha é parceiro contratual do profissional, utilizando como critério essencial que este exerça influência predominante na celebração do contrato. Tais situações são as seguintes:
Como referido, o elenco é meramente exemplificativo, sendo o próprio n.º 3 do diploma que refere que “…podem ser considerados, para aferição da existência de influência predominante do prestador de mercado em linha na celebração do contrato, quaisquer factos suscetíveis de fundar no consumidor a confiança de que aquele tem uma influência predominante sobre o profissional que disponibiliza o bem, conteúdo ou serviço digital.”.
Parceiro contratual será, então, todo o prestador de mercado em linha que preencha uma das supra referidas prescrições.
Ora, chega-se, nesta sede, aos primeiros problemas deste artigo: (i) a sua ambiguidade e a (ii) utilização de conceitos indeterminados, para nós, demasiado abrangentes.
Naturalmente que será a doutrina e a jurisprudência a construir os limites e tais conceitos.
Parece-nos, todavia, que o conceito de “influência predominante” é demasiado abrangente. Ainda que se reconheça que este critério é fortemente inspirado nas Model Rules on Online Platforms, do European Law Institute (ELI), o mesmo acaba por ser menos exigente.
A título meramente exemplificativo, nas Model Rules preconiza-se uma análise global da plataforma/mercado em linha, enquanto no artigo em sindicância parece bastar o preenchimento de uma das alíneas indicadas ou , menos ainda, a alegação de uma circunstância que sirva no n.º 3 do artigo 44.º que, pensado para ser uma válvula de escape, é na verdade uma porta de entrada para dissonâncias e decisões arbitrárias.
Volvendo ao n.º 1 desta norma, do mesmo resulta o termo “responsabilidade solidária”.
A responsabilidade solidária vem impor que os sujeitos obrigados, nos termos da lei ou do contrato, respondam perante o credor, cada um, pela totalidade da prestação.
Uma leitura do artigo em causa poderá levar-nos a acreditar, prima facie, que o consumidor poderá exercer, perante estes responsáveis solidários, rectius plataformas, qualquer um dos direitos que a lei lhe confere.
Quanto a nós, trata-se muitas vezes de palavreado vazio. Na verdade, essa possibilidade fica, amiúde, vazia do seu conteúdo necessário e finalístico.
Vide que o contrato celebrado tem como partes o consumidor e o profissional vendedor, e não o operador de mercado em linha. Isto é: o contrato (negócio jurídico) continua a ser um contrato celebrado entre aquelas partes, pese embora detenha a influência dominante do prestador de mercado em linha.
Ora, se assim é, como será possível afirmar que o consumidor poderá exigir de um terceiro [prestador de mercado em linha] a resolução do contrato celebrado com outrem?
Da mesma sorte, como poderá tal terceiro ser responsável pela redução de um preço que não recebeu?
Dificilmente nos parece que tudo isso possa suceder, atento o princípio da relatividade dos contratos, dado não existir contrato de compra e venda celebrado entre o consumidor e a plataforma passível de ser, por exemplo, resolvido.
Cremos que, naquilo que poderá ser uma demanda, para que a pretensão de um consumidor encontre respaldo e guarida na norma apontada, este poderá sentir-se tentado a i) resolver o contrato junto do vendedor, ii) exigindo uma indemnização à plataforma que corresponda ao valor do pagamento que realizou junto do primeiro e/ou dos danos causados pela desconformidade (vulgo defeito).
Todavia, não será uma tarefa fácil, porquanto: i) a indemnização é um remédio previsto na LDC e não no DL 84/2021 e ii) o artigo 44.º parece limitar a responsabilidade “nos termos do presente decreto-lei.”
Mas mais ainda: No que concerne à reparação ou substituição, entendemos ser manifestamente excessivo e irrazoável sujeitar uma sociedade comercial cujo objeto não compreenda as atividades do profissional/vendedor, e que está sujeita ao princípio da especialidade de fim (artigo 6.º do CSC) a proceder a uma reparação, suportando todos os encargos.
Não obstante os sinais dos tempos e a importância desta matéria assaz “revolucionária”, a verdade é que o regime peca por contrariedades básicas que poderão colocar em causa o seu alcance prático.
Continuaremos atentos e a refletir sobre um dos contratos mais presentes na vida dos consumidores.